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Beira-mar, oceano de histórias

Por Bruna Cruz, Émerson Rodrigues e Hannah Freitas

A Avenida Beira-Mar é um oceano de histórias. Ao longo de sua extensão, encontramos turistas, cidadãos da Terra da Luz, trabalhadores ambulantes e pescadores. Durante três dias, percorremos o calçadão, entre o aterrinho da Praia de Iracema e o Mercado dos Peixes, em busca de ouvir as histórias daqueles que pouco são ouvidos - justamente aqueles que mais tempo passam entre o sal da água e o calçadão de paralelepípedo.

 

Queríamos mostrar a Beira-Mar que ninguém vê. A Beira-Mar dos que trabalham à beira-mar ou até mesmo dentro de suas águas. A avenida dos que se sentem mais vivos simplesmente por ainda poderem entrar na água. 

Os concretos da Beira-Mar, uma Avenida 

 

A Avenida Beira-Mar está na vida de seu Ciro, 74, há mais de 30 anos. Encontrar o vendedor de água próximo ao espigão da Rua João Cordeiro não foi por acaso, mas por indicação de outro vendedor ambulante, que não quis conversar conosco.

 

Naquela manhã de sábado, Ciro usava um boné, uma camisa polo e mangas longas amarelas que poderiam chegar aos dedos de sua mão se quisesse. Na manga esquerda havia um “Deus é fiel” escrito. O vendedor ainda vestia uma bermuda verde e um chinelo preto bem gasto. Sobre as vendas, ele nos respondeu que na alta estação, de dezembro a fevereiro, o lucro era maior e ajudava a complementar o salário mínimo que recebia de aposento.

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Foto: Hannah Freitas

Sua vitalidade nos chamou ainda mais atenção quando ele nos contou que percorre quase todo dia, em trajetos de ida e volta, os 4,5 km do trecho da Avenida Beira-Mar entre a Ponte dos Ingleses e o Mercado dos Peixes.

Ao ser questionado se gostava de trabalhar sempre com o mar de companhia, seu Ciro foi sincero. Disse que, se pudesse, não trabalharia mais ali porque considerava a Beira-Mar como qualquer outro lugar da cidade. Os dias à beira-mar, contudo, não sairão da sua memória. Depois de conversar conosco, seu Ciro recolocou os isopores sobre os ombros e voltou ao trabalho.

Seguimos nosso caminho até encontrar Emídio Sousa próximo à entrada do espigão da João Cordeiro. O gari usava uma farda da Ecofor, empresa responsável pela limpeza urbana de Fortaleza. Emídio aceitou conversar conosco, mas não permitiu que tirássemos uma fotografia que revelasse sua identidade. Porém, ele nos deixou fotografá-lo de costas, junto com seu material de trabalho: um carrinho de mão enferrujado, uma pá e uma vassoura.

Trabalhando como gari na Beira-Mar há aproximadamente um ano, Emídio, morador da Avenida Castelo Branco (Leste-Oeste), já está acostumado a ser quase “invisível” perante o público que frequenta a orla. Mesmo assim, ele, que antes trabalhava em uma fábrica de castanha, não escondeu de nós que gosta de trabalhar mantendo a Beira-Mar limpa e que não quer sair de lá de jeito nenhum.

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Foto: Émerson Rodrigues

Depois de nossa conversa com Emídio, continuamos a caminhada pela orla da Beira-Mar. Durante o percurso, em meio a pessoas fazendo exercícios físicos e outras passeando com cachorros, chegamos ao Aterro da Praia de Iracema. Daquele ponto em diante, começamos a ver com mais frequência vendedores que utilizavam alguns bancos de concreto do calçadão para vender bijuterias, chapéus de praia, bolsas esportivas, entre outros acessórios.

No entanto, algo despertou em especial nosso interesse: um castelo de areia, feito por um artista de rua chamado Alexandre de Almeida. Alexandre, 43, naquele dia, também era responsável por proteger o castelo e se prontificou a falar conosco… desde que fosse “só verbal”. Por isso, não temos imagens de Alexandre, apenas do seu Castelo.

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Foto: Émerson Rodrigues

Alexandre usava um short preto, uma chinela da mesma cor nos pés e estava sem camisa, o que nos fez observar a vermelhidão típica de alguém que passa o dia ao sol - possivelmente sem protetor solar.

Antes de começar a falar conosco, Alexandre avisou que ia tomar um copo de cachaça. “Só funciono assim”, lembramos de ele ter nos dito. Foi até uma bolsa que estava debaixo de um guarda-sol, tirou o litro de cachaça de dentro, pôs uma dose num copo de plástico e bebeu de uma vez só. Voltou sorrindo e até mais animado.

O artista de rua contou que trabalha na praia há mais de 30 anos e, há um ano, faz castelos de areia. Sobrevive da colaboração das pessoas que passam e veem sua arte, que aprendeu, segundo o próprio, por curiosidade. Sobre o fato de trabalhar como artista na praia, vamos deixar ele mesmo contar.

Alexandre também nos disse que levou dez dias para fazer o castelo todo. Tão importante quanto terminar a escultura é mantê-la segura. Por isso, Alexandre se denomina “Dragão do Castelo”, o protetor-mor da estrutura, que pode ficar de pé por até seis meses de acordo com ele.

Apesar das adversidades, Alexandre conclui: “Deus sabe o que faz. É tudo que eu precisava (trabalhar na praia): uma terapia para o meu pensamento.”

Nas águas da praia, um mar

A praia pode ser muito mais que uma faixa de areia e o mar. Pode ser lugar de reencontros e de recomeços. A água do mar lava a alma e renova as energias, permitindo a liberdade que a terra firme, muitas vezes, limita.

Limitação. Seu João Batista, 56, sabe bem o que essa palavra significa na prática. No fim de 2014, ele sofreu um aneurisma cerebral e os movimentos do lado direito do seu corpo ficaram comprometidos. Como não conseguia sair de casa, a depressão se manifestou, mesmo com sessões de terapia e remédios. O vazio que sentia só foi preenchido graças ao amor de sua mulher e sua paixão pelo mar. Sua esposa, dona Socorro Denis, 54, lembra bem dos dias complicados.

E lá se foram seu João e dona Socorro para a Praia de Iracema. Depois de tanto tempo confinado num apartamento, ele pôde reencontrar o mar que sempre admirou desde as aventuras da juventude. Ao seu lado, sempre a primeira namorada e esposa. Um reencontro de libertação que curou seu João da depressão, trouxe-lhe alegria, novas memórias e boas conversas. “Pra ele, isso aqui foi ótimo. Ele saiu da medicação, ele não tem mais depressão, ele dorme bem, fez um círculo de amizade”, concluiu dona Socorro, acrescentando que também tem uma relação especial com o mar. “Você vê o mar, você se sente bem. É muito bom”.

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Foto: Émerson Rodrigues

A relação do casal com o mar não é de hoje. Eles contam que costumavam ir à Praia de Aracati, distante 150 km da capital cearense, uma vez ao ano com os amigos. Divertiam-se, tomavam banho de mar, pescavam e seu João ainda aproveitava para mostrar seu talento musical. “Ele cantava divinamente bem”, elogia a apaixonada dona Socorro. Uma paixão abençoada pelo mar que dura 38 anos e trouxe 4 filhos.

Hoje, graças ao Praia Acessível, seu João pode optar por sair ou não de casa. Para ele, a resposta já é sabida: toda semana vai à praia tomar um banho de mar, conversar com os colegas de projeto, viver. Para quem esteve à beira da morte e levou sequelas para a vida, hoje, a opção absoluta é sempre o “sim”.

Seu João é um dos 4.400 atendidos pelo Projeto Praia Acessível (PA), parceria do Governo do Estado com a Prefeitura de Fortaleza que proporciona a pessoas com deficiência, limitações motoras e idosos tomar banho de mar. Coordenador do projeto desde a sua inauguração, em março de 2016, Luiz Machado, 54, destaca a qualidade dos equipamentos utilizados no projeto: uma esteira de tração estendida, que liga o calçadão ao mar e permite a locomoção dos atendidos, e as cadeiras de rodas anfíbias, que flutuam na água.

O coordenador reforça que o projeto é importante devido à falta de consciência da população em geral sobre acessibilidade. Para Luiz Machado, o Praia Acessível permite a reintegração familiar e a socialização da pessoa com deficiência. “Durante toda a vida, ela [a pessoa com deficiência] recebe não. Os projetos de acessibilidade como esse propósito, eles não são um sim, eles não significam um sim, eles significam a possibilidade do sim”, resume.

Machado conta que já foi questionado sobre o porquê de se dedicar tanto ao projeto se ninguém da sua família ou ele mesmo sofre com algum tipo de limitação física. A resposta perpassa muitos pontos - o respeito ao próximo, a garantia dos direitos, a cidadania, a acessibilidade -, mas o principal motivo é o mar.

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Em outra manhã de novembro, a Beira-Mar nos recebeu. Por indicação de alguns pescadores, já próximo ao Porto do Mucuripe, fomos apresentados a seu Expedito, um dos mais antigos pescadores da região. Na sombra de algumas árvores, ao lado do esqueleto de um barco de madeira, ele nos recebeu com um caloroso aperto de mão.

Expedito de Sousa, 66, pode dizer que teve uma vida de pescador. Trabalhando há mais de 56 anos no mar, é de lá que ele tira o seu sustento. O pescador revela, porém, que tem deixado de pescar devido ao reumatismo. Sobre trabalhar na imensidão azul, seu Expedito é sincero: a sensação de liberdade é constante, mas as noites sem sono, enquanto está no mar, também.

Da água, seu Expedito disse que tira quase todo tipo de pescado, principalmente entre outubro e fevereiro, período que considera ideal para pescar no litoral cearense. Ele ressalta, contudo, que já passou por grandes perrengues, como a vez em que ele e mais dois companheiros de pesca passaram 5 noites no mar, com o casco da jangada danificado depois de uma tempestade. Felizmente, ele e os outros pescadores conseguiram voltar à terra firme e tranquilizar a família. “Eram cinco horas da manhã, mas, por causa da tempestade, parecia que era meia noite”, resume.

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Foto: Émerson Rodrigues

Seu Expedito nos conta que, quando está pescando, não tem como se comunicar com a esposa e com os 8 filhos, já que lá “celular nenhum pega. Nem os mais modernos”. O pescador também nos diz que a maior dificuldade de pescar de jangada é o vento, que pode tornar a atividade bem mais arriscada. “O coração do mar é o vento. Quando tem vento, o mar fica agitado. Quando não tem, é beleza”, explica.  

No fim, perguntamos a seu Expedito qual seria seu maior sonho. “Meu sonho mesmo é eu viver. A gente vivendo tem tudo, né?”, confessa.  Nos despedimos de seu Expedito com o mesmo aperto de mão firme que ele nos deu quando nos conhecemos.

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Fotos: Émerson Rodrigues e Hannah Freitas

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