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Especulação imobiliária da orla: desenvolvimento ou degradação?

Por Guilherme Conrado, Henrique Villela e Lívia Carvalho

Em abril deste ano, a Prefeitura de Fortaleza entregou a minuta do Plano de Gestão Integrada da Orla Marítima - Projeto Orla, que tem como foco o “ordenamento da orla municipal e sua gestão, e agrega-se ao conjunto de planos, projetos e instrumentos que a Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF), vem desenvolvendo com a finalidade de promover o desenvolvimento sustentável do município”. 

 

O documento apresenta ainda propostas de ações e medidas estratégicas para cada zona de orla da cidade de acordo com os problemas apontados por um diagnóstico realizado previamente. Para a Praia do Futuro - localizada na Orla IV -, o projeto prevê uma requalificação paisagística e ambiental da costa, a regularização fundiária e a articulação com órgãos competentes para elaboração de projeto de saneamento básico.

Mar esverdeado, areias claras e grandes barracas de praia que contam com piscina, lan house e até salão de beleza são algumas das atrações divulgadas aos turistas que visitam a cidade de Fortaleza. Para eles, a Praia do Futuro é quase que parada obrigatória. No período do carnaval, a Associação dos Empresários da Praia do Futuro estima que 450 mil pessoas passam pelos 8 km de extensão do local. Por trás desses números, porém, está um controverso histórico de tensões entre interesses comerciais, públicos e ambientais. O desdobramento desses elementos reflete também em outras praias da orla, ameaçando a integridade de regiões vizinhas, como a Sabiaguaba.

A Praia do Futuro foi o último trecho da orla incorporado à zona urbana de Fortaleza. Uma ação publicitária que colocava a região como a “Barra da Tijuca do Ceará” alavancou o interesse imobiliário e atraiu toda uma movimentação desenvolvimentista em direção ao local. Com avenidas ampliadas e iluminadas, um pólo turístico tomou forma na Praia que possui a maresia mais forte do Brasil.

 

No meio disso tudo, uma questão foi negligenciada: a preservação ambiental. A Praia do Futuro, que já foi tida como uma das poucas não-poluídas da orla de Fortaleza, chegou a ficar completamente imprópria para banho em abril de 2016, segundo boletim da Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace).

Toda a estrutura das barracas de praia acaba cobrando um custo alto. Um estudo técnico feito pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e pela Gerência do Patrimônio da União concluiu que as barracas estavam em área irregular da praia, tendo sido construídas sem as devidas licenças urbanísticas e ambientais. Em maio de 2017, o Tribunal Regional Federal 5 estabeleceu o prazo de dois anos para que as barracas construídas sem autorização sejam demolidas.

Muitos desses estabelecimentos foram erguidos sem um esgotamento sanitário adequado e acabam despejando seus dejetos na água do mar. Em períodos de chuva, as galerias pluviais se enchem de esgoto clandestino e a sujeira é carregada pela precipitação até a área da praia. Dados obtidos junto à Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma), demonstram que o problema tem uma dimensão maior: 16 mil imóveis estão aptos a receber ligação de esgoto, mas os próprios moradores não se interligam à rede, tanto por extrema baixa renda quanto por descaso.

 

A ocupação irregular, contudo, não é a única a trazer impactos para a região. O assentamento de indústrias ligadas ao Porto do Mucuripe, bem como a expansão hoteleira e de residências de alto padrão na forma de mansões e prédios altos, têm ocasionado problemas como o desmonte das dunas, a erosão costeira, a insurgência de ilhas de calor para a cidade e ainda o desmatamento vegetacional da orla, que acarretou em perda da biodiversidade nativa.

 

Sabiaguaba: na trilha da preservação

 

Enquanto décadas de exploração sem controle vem sendo remediadas como podem, a região vizinha à Praia do Futuro luta para não repetir os mesmos erros de uma logística de urbanização danosa. O Parque das Dunas de Sabiaguaba se tornou um novo alvo da especulação imobiliária. A região é afetada pela expansão da Zona leste de Fortaleza, o que pode prejudicar sítios arqueológicos, componentes da paisagem e ecossistemas de elevada fragilidade cuja fauna e flora são de relevantes interesses socioambientais e científicos.

 

Em dezembro de 2010, foi criado um Plano de Manejo para o Parque da Sabiaguaba. O Parque Natural Municipal das Dunas de Sabiaguaba (PNMDS), em parceria com a Prefeitura de Fortaleza, estabeleceu estratégias para preservação da Área de Proteção Ambiental de Sabiaguaba (APA), como zoneamentos para proteger a Unidade de Conservação (UC) do território.

 

Segundo o Plano, uma das ações orientadas para o zoneamento é “fortalecer a integração e viabilizar a educação organizativa entre os moradores de modo a diminuir riscos e vulnerabilidade local diante da especulação imobiliária crescente no bairro.” O documento também prevê “ações de educação ambiental e pedagogia vinculada às UCs para consolidar noções de pertencimento ao lugar e à comunidade”.

Além do Parque das Dunas, o bairro também possui parte do território do Parque Estadual do Cocó. Durante a nova regulamentação do Parque, em 2017, as comunidades tradicionais da Sabiaguaba eram vistas como um impasse para o governo assinar o decreto. Os imóveis não poderiam estar em território de Parque, portanto, seriam removidos.

Através de luta e negociação em audiências públicas, uma das comunidades, a Boca da Barra, conseguiu um acordo para constar um capítulo sobre seu território no documento do Parque do Cocó. O local em questão passa por estudos antropológicos, com sua permanência concedida. Só não há certeza do que irá acontecer depois que os estudos terminarem.

 

 

 

 

Quem vive na região se vê constantemente desafiado a defender o território. Viviane Pinheiro mora na Sabiaguaba e atua como mediadora de leitura infantil. “Pra gente estar hoje aqui, morando, foi um processo de luta e negociação muito grande com o governo. Passamos por várias audiências públicas, depois por várias reuniões internas, com um grupo de trabalho que montamos na época”, explica.

Além de ocupações irregulares, as construções do governo pensando no desenvolvimento da região também acabam por afetar o ecossistema. Em 2010, a ponte sobre o rio Cocó, mais conhecida como Ponte da Sabiaguaba, foi inaugurada. Fazendo conexão entre as praias do Futuro e da Sabiaguaba, a estrutura teve investimento de quase R$10 milhões.

 

 

 

 

 

 

 

Se por um lado o acesso à região foi facilitado, por outro os moradores relatam diversos problemas, como o afeto à pesca dos mariscos. “A ponte trouxe o avanço da especulação imobiliária, da violência, da insegurança, mas afetou a economia local, dentro da cultura. Porque a mariscagem é uma cultura alimentar e de subsistência”, afirma Viviane.

De acordo com a coordenadora de Políticas Ambientais da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma),  Edilene Oliveira, a ponte realmente facilitou o acesso e a chegada de turistas à região. “Coincidência ou não, nos últimos tempos começaram a aumentar a quantidade de invasões. Não estou dizendo que as invasões são por causa da estrada, mas o acesso propicia [isso], as pessoas querem morar aonde tem acesso”, reconhece.

Quanto à questão pesqueira, a coordenadora admite não saber da situação,  porém afirma “que isso pode ter interferido um pouco, mas nós não temos relatos de moradores de diminuição de peixes. Não sei desse impacto [dos mariscos] porque a construção da ponte ela foi bem gradual. Primeiro foram feitos os pilares, depois o desmatamento, aí até a ponte ficar pronta... Então a gente teria que ver desde quando o marisco diminuiu. Talvez existam outros elementos, até mesmo de poluição”.

Praia do Futuro (à esquerda) nos anos de 1960

Fonte: Fortaleza em Fotos e Fatos

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Praia do Futuro no início dos anos 80

Fonte: Fortaleza em Fotos e Fatos

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Área de Proteção Ambiental e Parque Natural Municipal das Dunas de Sabiaguaba

Fonte: Jeovah Meireles

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Zonas de Interesse Ambiental e Zonas de Preservação Ambiental na Sabiaguaba

Para o professor de Geografia da Universidade Federal do Ceará, Jeovah Meireles, o crescimento urbano dessa região deve ser trabalhado de modo delicado. O docente faz parte do comitê gestor do Parque das Dunas de Sabiaguaba e afirma que “estamos acompanhando as várias denúncias das representações da sociedade que estão nesse comitê, da má gestão de uma unidade tão importante para a cidade de Fortaleza, com dunas, manguezais, lagoas, praias, sítios de reprodução de tartarugas, sítios arqueológicos, áreas que capturam as brisas e distribuem na cidade de Fortaleza, estão completamente descuidados”.

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Para a região da Sabiaguaba - localizada na Zona da Orla V -, as Secretarias de Planejamento, Urbanismo, Meio Ambiente, Infraestrutura, Conservação e Serviços Públicos e Turismo do Governo do Estado e da Prefeitura estão responsáveis por promover o reordenamento e regularização de moradias e de eventos e atividades.

Já as Secretarias Municipais e Estaduais ficam encarregadas de promover o monitoramento e o controle das intervenções urbanas na orla e fomentar o plantio e replantio da vegetação nativa a fim de minimizar os impactos causados pela intervenção urbana na zona costeira. O documento, no entanto, não apresenta quais ações específicas serão realizadas para que essas metas sejam atingidas.

Outra iniciativa governamental, o Plano Fortaleza 2040 lista perspectivas em diversas áreas de desenvolvimento para o futuro da cidade. No tocante à regularização fundiária, o projeto afirma que a Prefeitura Municipal não pode fugir de suas responsabilidades e deve ser reorganizada estruturalmente para melhor delegar as competências. Dentre os 25 objetivos específicos presentes no documento estão a criação de Conselhos Gestores e Setoriais, o cadastramento dos terrenos urbanos e a promoção de seminários e capacitações abertas ao público.

"Morar no paraíso tem um preço"

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Viviane Pinheiro, mais conhecida como Vivi, decidiu deixar Belém, sua terra natal, para buscar outro mercado de trabalho em Fortaleza. Não conhecia bem a cidade na época, e em um passeio com um amigo, conheceu a praia da Sabiaguaba. Logo sentiu que aquele lugar a afetava, como um chamado. Ela lembra que chegou a afirmar “‘Aqui eu compraria uma casa’, o que na época era uma completa insanidade, porque eu nunca disse que ia comprar uma casa na vida”. Em 2013, se mudou definitivamente para o bairro, na comunidade da Boca da Barra.

No local, ela deu origem a um projeto com foco nas crianças e na sua formação. “Elas vinham pra cá pra eu ler histórias, pra desenhar, brincar. Sempre tive livro infantil no meu acervo. Sempre tive muita afinidade com criança”. Com o crescimento da ideia, uma biblioteca foi montada para atender não só aos pequenos, mas a toda comunidade.

Entretanto, faltava um nome para a Casa. Um pescador local, Jonathan, ou só “Dudu”, sugeriu a Vivi um nome que ela nunca tinha escutado: Camboa. “Ele foi me falar que camboa é um local de pesca, rico em nutrientes, matéria orgânica, em mariscos. Camboa é um local de pesca dentro do mangue. Como um berçário natural. Muitas espécies vêm do mar, e desovam na camboa, e aquele filhote fica lá, se nutrindo, se alimentando, crescendo pra depois, quando houver a maré grande, ele volta pro mar de novo. E nossa, eu fiquei emocionada quando ele falou pra mim o que era uma camboa. Essa é a casa que estamos fazendo as histórias? É um útero". Nascia, então, a Casa Camboa.

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Fotos: Lívia Carvalho

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Hoje, o espaço recebe cursos de faculdades para aulas de campo, além de hospedar cineclubes e promover oficinas de acordo com o que a comunidade demanda. E, acima de tudo, é um lugar de acolhimento das gerações.

Fotos: Lívia Carvalho

Fotos: Guilherme Conrado e Lívia Carvalho

“A gente pode ficar sem comer, sem beber. Mas a gente não pode ficar sem respirar. Então o mar é minha vida, saca? É tudo. É onde eu me conecto comigo mesmo. Onde eu paro e vejo onde sou ser humano. Onde conheço meus limites, e onde sei onde é sagrado. Ali é onde aprendo a respirar”

O ar. É assim que Roniele Silva define o mar. Com 30 anos, nasceu e cresceu na Sabiaguaba. O pescador só tem o jeito simples, mas carrega consigo uma sabedoria de quem já viveu e viu muita coisa apesar da pouca idade.

 

Em janeiro de 2017, ele se reuniu com cerca de 20 voluntários para realizar uma limpeza no leito do Rio Cocó. Nascia ali o projeto Sabiaguaba Lixo Zero. A iniciativa veio para alertar os frequentadores e os turistas sobre a poluição na região.

“Começou quando nós, um grupo de mergulhadores, se sentou e começou a discutir sobre como poderia limpar o rio. Teve um dia, num mergulho, voltamos e perguntamos ‘como fazer uma limpeza realmente bacana?’. E começamos a pensar nas atuações. Tivemos 4 reuniões, e na quarta, definimos como seria”, explica Roniele.

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Foto: Henrique Villela

No primeiro semestre daquele ano, o grupo conseguiu retirar mais de três toneladas de lixo do rio. “O Projeto nasceu também pra dar uma resposta significativa de que as comunidades tradicionais têm consciência de preservar o meio ambiente. Não só o meio ambiente, mas também todo o ecossistema”, reitera.

Risonho, o pescador muda de tom quando questionado sobre a construção da ponte no bairro, e como afetou seu ambiente. “O impacto foi até na alma. Não foi só um impacto de trazer a especulação imobiliária. De pessoas que vêm e não respeitam a comunidade. Um progresso que não teve benefício pra comunidade. Só trouxe malefícios. Quando tomamos consciência, já era tarde”.

“Na palavra meio ambiente, rapidamente você faz uma divisão entre homem e natureza. E nós, filhos da terra, não temos essa visão de que um é separado do outro. A gente necessita da mãe terra. Até para praticar a espiritualidade, tem que ter esse contato com a natureza, saca?”

Apesar de tantas mudanças no seu lar, a relação entre o meio ambiente e Roniele não mudou. No mar, ele encontra sua paz.

Fotos: Guilherme Conrado, Henrique Villela e Lívia Carvalho

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