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Vila do Mar, trajeto de avanços e avessos

Por Émerson Rodrigues e Guilherme Conrado

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À nossa esquerda, estava o mar, que guardava ali perto do litoral algumas jangadas, alguns espigões e alguns admiradores de sua beleza. Por fim, à nossa frente, era possível ver prédios um tanto distantes, mas, até mesmo de longe, um tanto imponentes. No Vila do Mar não. Ali, a vida segue sem edifícios e cresce em casas humildes como muitos de seus moradores.

Foto: Prefeitura de Fortaleza

"Bem-vindos ao Vila ao Mar”, foi a primeira frase que ouvimos assim que o ônibus deu as costas para a Ponte sobre o Rio Ceará. Era ali que começava, logo depois de uma curva brusca. No mesmo instante, o asfalto deu lugar ao calçamento de paralelepípedo. De um lado, numerosas barracas de praia, não tão luxuosas (e talvez nem tão caras) como as da Praia do Futuro ou da Praia de Iracema. Do outro, havia casas, ora pequenas, ora mais largas, ora simples, ora mais trabalhadas, ora sem cor, ora coloridas. Mercearias, salões de beleza, sorveterias; a comunidade ali estava um pouco representada.

 

O ônibus tratou de correr um pouco mais. À medida em que avançava por aquela avenida de calçamento à beira-mar, a vista parecia cada vez mais inesquecível. Descemos no calçadão. Aos nossos olhos, três paisagens bem distintas. À nossa direita, havia o Pirambu, sétima maior favela do Brasil, cercada de suas histórias quase centenárias, e que junto com a Barra do Ceará e Cristo Redentor, forma o Vila do Mar. Unidos, os três abrigam quase 130 mil pessoas.

Pouco mais de 5km nos separavam daqueles prédios, como também pouco mais de cinco quilômetros nos separavam da Avenida Beira-Mar, de seus edifícios altos, dos turistas que ela recebe, de uma realidade tão diferente da que nos encontrávamos.

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No caminho, moradores se ocupavam com a lavagem de carros, enquanto outros se mantinham  sentados na calçada; gente tomando cervejas em um barzinho ali perto, jogando sinuca, talvez um carteado, todos em meio a um sol de mais de 30° C.

Chegamos a casa de Elisângela dos Santos, a Firó ou Filó (chame como quiser, ela nos disse), como é conhecida na comunidade, por volta das 3h da tarde, mas ela não estava. Pouco depois, porém, foi fácil entender porque ela se tornou líder comunitária. Firó chegou sorridente, se desculpando por ter se atrasado, mas pronta para nos fazer entender um pouco de como era morar ali.

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Foto: Igor Magalhães

Já acomodados na varanda do segundo andar de sua casa, de frente para o mar e para a avenida por onde havíamos chegado, Firó tentava nos descrever a sensação de morar de frente para o mar.

Moradora do bairro desde o nascimento, Firó vai completar 34 anos em dezembro. Ela conta que acompanhou todo o processo de requalificação da região do Vila do Mar desde o início, há mais de 20 anos, quando o projeto ainda se chamava Costa Oeste. Em meio às obras, vários conhecidos seus e antigos moradores do bairro acabaram tendo que deixar suas casas para morar nas proximidades da avenida Francisco Sá e em bairros bem mais distantes, caso do Conjunto Prefeito José Walter, no extremo sul da cidade, em apartamentos concedidos pela Prefeitura de Fortaleza. Era isso, ou receber uma indenização. Para Firó, a saída dos moradores do bairro foi como perder um ente querido.

“Tem gente que hoje ainda volta para passear, enche o olho d’água e diz: ‘aí como eu queria continuar morando aqui’. É uma perda que a pessoa sabe que não pode mais voltar”

Mesmo com alguns de seus vizinhos mais antigos tendo que deixar o Vila do Mar após as obras de requalificação, Firó não se escondeu e parece ter entendido bem sua importância para a comunidade. Presidente do Conselho do Posto de Saúde Quatro Varas, que busca melhorias para o equipamento público, ela também ocupa o mesmo cargo na Associação Terra Prometida, que tem um histórico de mais de 25 anos de luta por moradia dentro da comunidade.

 

Além disso, Firó também atua junto aos pescadores do Grande Pirambu e participa dos conselhos escolares tanto do Estado como do município. A luta por melhorias, para ela, no entanto, deve partir dos próprios moradores, que não devem apenas esperar que os governantes façam alguma coisa.

“Eu não sou pedinte pra tá pedindo. Eu tenho a Constituição que me dá direito a isso [cobrar os governantes]. Então, eu posso chegar em qualquer pessoa [pública] ou vereador que foi eleito e cobrar dele. Não é pedir”

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Foto: Lívia Carvalho

Firó também acredita que o turismo comunitário, desenvolvido pelos próprios moradores, pode contribuir para que as comunidades próximas ao Vila do Mar se fortaleçam do ponto de vista econômico, atraindo turistas para a região Oeste da cidade. Ela, inclusive, já tem uma ideia pronta nesse sentido.

Durante a nossa conversa, em outubro deste ano, a líder comunitária também comentou sobre a construção de dois mini mercados dos peixes nos moldes do mais famoso, localizado no Bairro Mucuripe, algo já previsto para o Grande Pirambu desde o projeto Costa Oeste. Ela revela que cobrou o prefeito Roberto Cláudio (PDT), em 2016, a construção dos mercados e de um espaço para a exposição e venda do artesanato local, que beneficiaria os pescadores da região.

 

Poucos dias após Firó nos receber em sua casa, a Prefeitura de Fortaleza anunciou que um Mercado dos Peixes, com mais de 1.000 metros quadrados e 15 boxes padronizados seria construído no Vila do Mar. O projeto, orçado em R$ 1,1 milhão, tem previsão de entrega para a metade final de 2019 e ainda contará com 10 quiosques destinados a mulheres empreendedoras da região para realização de comércio e artesanato. A cobrança de dois anos atrás parece ter dado resultado.

A reportagem tentou entrar em contato com a Secretaria de Turismo de Fortaleza (Setfor), por e-mail e telefone, durante o mês de novembro. O objetivo era falar sobre a construção do Mercado dos Peixes no Vila do Mar e também sobre a presença ou não da região na rota turística da cidade. Até o momento, contudo, não obtivemos resposta.

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Foto: Igor Magalhães

A conversa agradável na varanda da casa de Firó se encerrou quando dois pães e uma garrafa de café foram colocados sobre a mesa. Em meio a nossa degustação, ela comenta que, se deixássemos, ela falaria por mais horas e horas. Infelizmente, não podíamos. Ainda tínhamos um longo caminho a percorrer pelo Grande Pirambu, mas não mais naquele dia.

Com a fome saciada, nos despedimos de Firó, mas não do Vila. Alguns dias depois, retornamos a região para caminhar pelo calçadão e encontrar outro líder comunitário com quem marcamos de conversar. Descemos um pouco mais à frente de onde fica a casa de Firó. A vida no Vila, no entanto, seguia como a que vimos no primeiro dia. Alguns moradores, inclusive, já colocavam as cadeiras, seja de balanço ou de madeira, para fora de casa. Era chegado o fim da tarde.

À nossa esquerda, o mar continuava a nos observar, onipresente. Outros detalhes, contudo, vieram à tona. Alguns postes instalados no calçadão estavam enferrujados - na mesma situação se encontravam as traves e os aros de basquete de uma quadra poliesportiva ali perto. Para piorar, vários bancos de madeira que, vez ou outra, apareciam durante o calçadão, estavam quebrados e com ferro exposto.

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Fotos: Igor Magalhães

Nos dias em que fomos ao Vila do Mar, sempre estivemos acompanhados de Sandra Monteiro. Moradora de um bairro não muito longe dali, o Presidente Kennedy, Sandra, de 34 anos, é mestra em Geografia e decidiu estudar o Vila do Mar e seus arredores em sua pesquisa. Para isso, passou 8 meses morando na região, conversando com moradores mais antigos e coletando material bibliográfico.

 

Foi Sandra quem nos guiou pelo Vila do Mar, como se fosse de casa. Mas para ela, o lugar é mesmo uma segunda casa - e deve ser a primeira também, já que ela tem planos de se mudar para lá em breve. Sandra conhecia cada esquina, conhecia os rostos por quem passávamos, conhecia, inclusive, os problemas que as comunidades que compõem o Vila do Mar sofreram e ainda sofrem - foi ela, inclusive, quem nos alertou para o estado de conservação dos equipamentos do calçadão.

No Vila do Mar, Sandra se sente livre, segura. Afinal, não tão distante dali, ela passou a juventude - quando mais nova, ia frequentemente até a Barra do Ceará, ver o rio se encontrar com o mar.

Na pracinha do Abel, de onde já era possível ver o trecho do Vila do Mar que ainda não está concluído, sentada em um tronco de coqueiro, transformado em “banco” pelos moradores do bairro, ela declarou sua paixão pelo mar.

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Foto: Igor Magalhães

“Eu lembro quando começou a construir a ponte Zé Martins Rodrigues, a ponte da Barra, e eu, na minha infância, ficava pensando: ‘como é que uma ponte dessa é construída,né? Dentro da água’”

O amor de Sandra pelo mar se confunde com o mesmo sentimento que ela sente pelo Vila. Um dos motivos que a fez estudar a região com ainda mais entusiasmo, além das questões históricas, foi o fato de que muitos moradores, ao serem perguntados se gostariam de sair do bairro, responderem negativamente, justificando a proximidade do bairro com o Centro de Fortaleza e com a região costeira da cidade.

Para a geógrafa, o tratamento que se dá ao local, como marginalizado e desqualificado, não condiz com a realidade. “Quando a gente conversa com os líderes comunitários, a gente escuta muito isso. Falta muito da ação do poder público para agir na comunidade e trazer não só uma obra dessa de urbanização, mas investir em educação, em saneamento, na saúde. Então é um projeto que a gente torce muito que dê certo”.

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Sandra também nos confessa que fica triste por grande parte da população de Fortaleza não conhecer o Grande Pirambu e, consequentemente, não visitar o lugar. “Muitas vezes, os moradores de Fortaleza nem conhecem o Pirambu, nem conhecem o Cristo Redentor. Se for pra procurar, as pessoas nem sabem localizar no mapa de Fortaleza onde é que fica”.

“Tem muita gente que se surpreende quando vem pra essa região Oeste da cidade e diz: ‘nossa, tem tanta coisa aqui e eu nem sabia’”

A diversidade cultural junto com a bela vista são combustíveis para Sandra continuar estudando e acreditando no potencial da comunidade. Ela luta ao lado de seus habitantes para que o espaço seja lembrado pelo o que realmente é: o lar de um passado que a transformou, e que ainda se transforma.

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Foto: Igor Magalhães

Na mesma pracinha em que conversamos com Sandra, um desenho já gasto pelo tempo indicava que estávamos perto de encontrar nosso próximo entrevistado. Naquela parede, havia crianças aprendendo a surfar enquanto outras jogavam futebol em um campinho de areia. É bem verdade que o reboco em algumas partes dificultava um pouco entender o desenho.

Aquela pintura, no entanto, ficaria mais clara quando encontrássemos o homem com o nome tatuado naquela parede: Evandro Rodrigues, um dos fundadores do Projeto Resgatando Vidas, que desde 2010 oferece aulas gratuitas de surfe, futebol e artesanato aos jovens da região.

 

Evandro mora no trecho em obras do Projeto Vila do Mar, entre a Avenida Pasteur e a Rua Santa Rosa, no Bairro Pirambu. Durante o caminho de areia fofa onde, desde 2014, deveria ser uma avenida com calçamento de paralelepípedo, percebemos que o esgotamento sanitário, prometido na obra, ainda estava longe de sair do papel. O esgoto a céu aberto - que escorria para o mar -, o forte mal cheiro e a presença de lixo - incluindo até mesmo um sofá velho - tornavam o local ideal para proliferação de doenças, como a leptospirose.

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Segundo a Secretaria Municipal de Infraestrutura (Seinfra), os trabalhos no trecho citado nesta reportagem seguem em ritmo normal e estão previstos para serem concluídos em março do ano que vem. Ainda segundo a Seinfra, atualmente, as obras no trecho de 620 metros de extensão, orçadas em R$ 6,7 milhões, seguem com os serviços de drenagem e construção do muro de contenção da faixa de areia.

Para a área, além da nova galeria de drenagem e do muro, ainda está previsto a continuação do calçadão, quadra poliesportiva, praça e ciclovia bidirecional, que será integrada a já existente no local.

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Foto: Lívia Carvalho

Fonte: Seinfra

Naquela tarde, contudo, observamos poucos trabalhadores e apenas uma retroescavadeira no local, indicativo que a obra não estava parada, mas transcorria de forma lenta, mesmo que a pichação em uma enorme tubulação de concreto mostrada na foto abaixo indicasse o contrário.

Fotos: Igor Magalhães

Ao mesmo tempo em que víamos o andamento das obras, um homem se aproximava. Era Evandro. Cumprimentou cada um de nós com um aperto de mão e deu um longo abraço em Sandra, que já conhecia desde a época em que ela morou na Barra do Ceará para escrever sua dissertação de mestrado.

 

Evandro foi logo mostrando como as obras estavam, reforçando que a promessa da Prefeitura era entregar o trecho até dezembro deste ano. O calor, o mal cheiro e a sensação de aridez devido a grande quantidade de areia no local, entretanto, nos fez perguntar se poderíamos conversar com Evandro com mais calma em outro lugar. Ele concordou. Após rápida caminhada, o líder comunitário sentou-se em um batente sombreado e começou a contar sua história.

 

Evandro Rodrigues, 44 anos, passou 16 anos de sua vida preso. Nascido e criado no Pirambu, especificamente na Comunidade da Pracinha do Abel, onde conversamos com Sandra, ele revela que se envolveu com o tráfico de drogas e começou a praticar pequenos furtos até ser preso. Na prisão, Evandro conta que sofreu “tudo que um homem pode sofrer na vida”. Passou fome e teve que ficar longe da família, dos amigos e da comunidade.

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Foto: Lívia Carvalho

Um dia, porém, ele percebeu que sua vida precisava de disciplina e que ele não poderia mais ser um “contraventor das leis”, como o próprio se define no passado. Evandro passou a trabalhar e estudar dentro da cadeia até sair por bom comportamento.

Após 16 anos longe da comunidade, Evandro viu um sonho de criança voltar a tona: queria ajudar os jovens da região a não cometerem o mesmo erro que ele cometeu quando mais novo. Junto com alguns amigos de infância, que também foram presos e que deixaram a prisão, Evandro pensou em um projeto que pudesse chamar a atenção dos jovens da comunidade pelas suas duas maiores paixões: o surfe e o futebol. Surgia então o Projeto Resgatando Vidas.

No começo, as dificuldades quase evitaram que o sonho de Evandro se concretizasse. “A única coisa que a gente oferecia a eles [jovens da comunidade] era, às vezes, uma água, uma sopa de osso, porque até então nós não tínhamos nenhum recurso”, disse.

Mesmo com os empecilhos, o projeto continuou, ganhou o carinho da comunidade e já completou 8 anos, oferecendo agora também aulas de artesanato. Quase 10 anos após deixar a prisão, Evandro vive bem consigo mesmo e trabalha há 5 no setor de Fiscalização da Regional do Centro. Para ele, contudo, a definição de dias melhores também passa pelo bem-estar da comunidade em que vive.

Evandro não esconde que há muito a se melhorar na comunidade. Para ele, faltam políticas públicas e investimentos mais consistentes em saúde, educação e lazer para que o Vila do Mar e a comunidade da Pracinha do Abel possam se desenvolver. O líder comunitário lembra que “nenhum gestor vai ser 100%”, devido ao jogo político que existe por trás. “Aqueles que gerem o Estado se dividem em partidos. Se eleito prefeito, ele tem que dar uma Secretaria pra um, uma Secretaria pra outro, e isso atrapalha muito a comunidade”.

Antes de encontrar Evandro no Vila do Mar, havíamos conversado com o professor do Curso de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Jeovah Meireles. Durante o encontro, Jeovah comentou que a relação entre capital e gestão pública prioriza investimentos em áreas de grande poder aquisitivo, deixando comunidades periféricas mais invisíveis, algo muito próximo do que Evandro comentou conosco.

“Racismo ambiental acaba sendo uma consequência desse tipo de desenvolvimento regido pela especulação imobiliária e as consequências negativas desse tipo de desenvolvimento recaem de forma desproporcional sobre determinados grupos sociais, que estão na periferia da nossa cidade, sem saneamento básico, sem acessibilidade, com problemas seríssimos de áreas verdes, áreas de lazer”, explica o professor.

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Evandro acredita que as comunidades mais periféricas de Fortaleza são esquecidas pelo poder público quando comparadas com regiões mais famosas, caso da Beira-Mar. Essa falta de visibilidade se reflete, inclusive, na forma como a população da periferia é tratada pelos agentes de segurança, como nos revelaram alguns moradores.

Além da reclamação com as abordagens desproporcionais da Polícia, a atuação de facções criminosas têm impedido que muitos moradores da comunidade possam trabalhar e estudar em outras regiões da cidade. Até mesmo para surfar em outros locais ficou mais complicado.

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Evandro ainda deixa claro que o Vila do Mar sofre com o estereótipo de que é uma comunidade perigosa, mas que ali os jovens têm sonhos e os moradores também querem paz.

Sobre o mar, Evandro se declara. Foi ele quem curou suas feridas, de onde tirou seu sustento. É ele o seu melhor amigo. O seu melhor conselheiro.

Nossa viagem pelo Vila do Mar se encerrou pouco depois daquelas palavras. Ainda na companhia de Evandro, fomos até um ponto do trecho em obras perto de sua casa para admirar a vista. Ali, a areia da praia se misturava com a areia de construção. Olhando o horizonte, a Beira-Mar nunca esteve tão próxima de nós desde a nossa primeira visita ao Vila. Da região, no entanto, saímos com a certeza de que mesmo tão perto, ela parece cada vez mais distante.

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Foto: Igor Magalhães

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